terça-feira, 20 de outubro de 2015

PARTE 3 - NO MUNDO DO CONSUMO (COLEÇÃO "PARA GOSTAR DE LER" (VOL. 1)



PARTE 3 – NO MUNDO DO CONSUMO

3.1 Conversa de compra de passarinho, Rubem Braga.
3.2 Aspirador, Fernando Sabino.
3.3 Caso de arroz, Carlos Drummond de Andrade.
3.4 A cesta, Paulo Mendes Campos

Parte 3 (No mundo do consumo) - Crônica 1

CONVERSA DE COMPRA DE PASSARINHO
Rubem Braga

          Entro na venda para comprar uns anzóis e o velho está me atendendo quando chega um menino da roça, com um burro e dois balaios de lenha. Fica ali, parado, esperando. O velho parece que não o vê, mas afinal olha as achas com desprezo e pergunta: “Quanto?” O menino hesita, coçando o calcanhar de um pé com o dedo de outro. “Quarenta”. O homem da venda não responde, vira a cara. Aperta mais os olhos miúdos para separar os anzóis pequenos que eu pedi. Eu me interesso pelo coleiro do brejo que está cantando. O velho:
          – Esse coleiro é especial. Eu tinha aqui um gaturamo que era uma beleza, mas morreu ontem; é um bicho que morre à toa.
         Um pescador de bigodes brancos chega-se ao balcão, murmura alguma coisa: o velho lhe serve cachaça, recebe, dá troco, volta-se para mim: “- O senhor quer chumbo também?” Compro uma chumbada, alguns metros de linha. Subitamente ele se dirige ao menino da lenha:
          – Quer vinte e cinco? Pode botar lá dentro.
          O menino abaixa a cabeça, calado. Pergunto:
          – Quanto é o coleiro?
          – Ah, esse não tenho para venda, não…
          Sei que o velho esta mentindo; ele seria incapaz de ter um coleiro se não fosse para venda; miserável como é, não iria gastar alpiste e farelo em troca de cantorias. Eu me desinteresso. Peço uma cachaça. Puxo o dinheiro para pagar minhas compras. O menino murmura: “- O senhor dá trinta…?” O velho cala-se, minha nota na mão.
          – Quanto é que o senhor dá pelo coleiro?
          Fico calado algum tempo. Ele insiste: “- O senhor diga…” Viro a cachaça, fico apreciando o coleiro.
          – Se não quer vinte e cinco vá embora, menino.
          Sem responder, o menino cede. Carrega as achas de lenha para os fundos, recebe o dinheiro, monta no burro, vai-se. Foi no mato cortar pau, rachou cem achas, carregou o burro, trotou léguas até chegar aqui, levou 25 cruzeiros. Tenho vontade de vingá-lo:
          – Passarinho dá muito trabalho…
          O velho atende outro freguês, lentamente.
          – O senhor querendo dar quinhentos cruzeiros, é seu.
          Por trás dele o pescador de bigodes brancos me fez sinal para não comprar. Finjo espanto: “- Quinhentos cruzeiros?”
          – Ainda a semana passada eu rejeitei seiscentos por ele. Esse coleiro é muito especial.
        Completamente escravo do homem, o coleirinho põe-se a cantar, mostrando sua especialidade. Faço uma pergunta sorna: “- Foi o senhor quem pegou ele?” O homem responde: “- Não tenho tempo para pegar passarinho.”
          Sei disso. Foi um menino descalço, como aquele da lenha. Quanto terá recebido esse menino desconhecido, por aquele coleiro especial?
          – No Rio eu compro um papa-capim mais barato…
          – Mas isso não é papa-capim. Se o senhor conhece passarinho, o senhor está vendo que coleiro é esse.
          – Mas quinhentos cruzeiros?
          – Quanto é que o senhor oferece?
          Acendo um cigarro. Peço mais uma cachacinha. Deixo que ele atenda um freguês que compra bananas. Fico mexendo com o pedaço de chumbo. Afinal digo com voz fria, seca: “- Dou duzentos pelo coleiro, cinquenta pela gaiola.”
          O velho faz um ar de absoluto desprezo. Peço meu troco, ele me dá. Quando vê que vou saindo mesmo, tem um gesto de desprendimento: “Por trezentos cruzeiros o senhor leva tudo.”
          Ponho minhas coisas no bolso. Pergunto onde é que fica a casa de Simeão pescador, um zarolho. Converso um pouco com o pescador de bigodes brancos, me despeço.
          – O senhor não leva o coleiro?
          Seria inútil explicar-lhe que um coleiro do brejo não tem preço. Que o coleiro do brejo é, ou devia ser, um pequeno animal sagrado e livre, como aquele menino da lenha, como aquele burrinho magro e triste do menino. Que daqui a uns anos quando ele, o velho, estiver rachando lenha no inferno, o burrinho, menino e o coleiro vão entrar no Céu – trotando, assobiando e cantando de pura alegria.

Parte 3 (No mundo do consumo) - Crônica 2

ASPIRADOR
Fernando Sabino

Antes que eu lhe pergunte o que deseja, o gordinho começa a exibir-me uma aparelhagem complicada, ainda na porta da rua. São tubos que se ajustam, fio para ligar na tomada, escovinhas de sucção e outros apetrechos.
– Entre – ordenei.
Ora, acontece que jamais prestei sentido na existência dos aspiradores de pó.
Por isso é que fui logo cometendo a imprudência de convidar o gordinho a exibir-se de uma vez no interior da sala. Na porta da rua venta e faz muito pó, disse-lhe ainda, tentando um trocadilho infeliz. Entramos os dois, para a tradicional peleja entre comprador e vendedor.
Vi o gordinho desdobrar-se, suando, estica o fio, não dá até a tomada, arrasta a cadeira um pouco para lá, não é isso mesmo? Ah, sim, com licença, quer limpar esse tapete?
É um tapete que arrasto comigo há anos, por todos os lugares em que venho morando. Já abafou meus passos em dias de inquietação, já recebeu alguns pulos meus de alegria, e manchas de café, de tempo, de poeira dos sapatos. Pois olhe só – em dois tempos o gordinho pôs a engenhoca a funcionar, esfrega daqui e dali, praticamente mudou a cor do meu tapete.
– Agora é que o senhor vai ver – anunciou, feliz, revelando-me a existência, dentro do aparelho, de uma sacola onde o pó se acumulava. Exibiu-me seu conteúdo com um sorriso de puro êxtase, o tarado.
Aquilo me decepcionou: pois se tinha de despejar o pó no lixo, por que não recolhê-lo de uma vez com a vassoura? Evidente burrice da minha parte – o gordinho devia estar pensando: com certeza eu esperava que o pó se volatilizasse dentro do aspirador, num passe de mágica?
Deixei que ele me enumerasse as outras aplicações do miraculoso aparelho: servia para escovar um terno, por exemplo, quer ver? E voltou para mim o cano da arma, que num terrível chupão quase me leva a manga do paletó.
– Serve também para massagens. Com sua licença – e passou-me no rosto a ponta do tubo. Minha pele foi repuxada sob a improvisada ventosa, deslocando-se ruidosamente num violento beijo de cavalo.
– Basta! – protestei: – Estou convencido. Compro o aspirador.
– E digo mais – prosseguiu ele, sem me ouvir: – Serve para refrescar o ambiente. Duvida? E só virar ao contrário…
– Não duvido não. Já está comprado. – … e funciona como um perfeito ventilador.
Fui buscar o dinheiro, paguei e despedi sumariamente o gordinho que, perplexo, continuava ainda a recitar sua lição:
– Aspira o pó dos lugares mais inacessíveis: aspira atrás das estantes, aspira cinzeiros, aspira…
– Obrigado, obrigado – e fechei a porta atrás dele.
Passei o resto da tarde me distraindo com a nova aquisição. De todas as maneiras: aspirei cinzeiros, estofados, cortinas, ternos, aspirei atrás das estantes, fiz desaparecer, até o último grão, o pó existente na casa.
Então tentei retirar das entranhas do aspirador a tal sacola, como o gordinho me havia ensinado. Para meu júbilo, estava bojuda como um balão. Só não me lembrei foi de desligar o aparelho que, como ele me havia ensinado também, virado ao contrário funciona como um perfeito ventilador: de súbito, explode no ar uma bomba de pó acumulado. Tudo voltou ao que era dantes, fui à cozinha buscar uma vassoura. És pó e em pó reverterás – pensei comigo.

Parte 3 (No mundo do consumo) - Crônica 3

Caso de arroz
Carlos Drummond de Andrade

E assim aquela eficiente dona-de-casa do Leblon resolveu o problema do arroz, do feijão, da carne e de outras preciosidades da nossa era: mudando de mercearia.
- Não! - exclamou a amiga. Não vá me dizer que Nossa Senhora Aparecida desceu por aqui e montou um supermercado. Milagre não vale!
Pois não era milagre, quem falou nisso? Era apenas a Federação, que divide (e reúne) o Brasil em nações autônomas, com seus recursos econômicos e seu comércio próprios. Os novos fornecedores de Dona Araci ficam ali no Estado do Rio. Não é precisamente no bairro em que ela mora, mas o casal comprou um carrinho paulista, e o marido de Dona Araci é um amor: concordou em ir de lotação para o escritório. Ela pegou os dois garotos, botou-os no carro e tocou para o País da Fartura, Caxias chamado:
- Vocês dão um passeio e me ajudam a carregar os sacos.
O merceeiro de Caxias vendeu a Dona Araci umas duas arrobas de magnificente arroz, mas
ponderou-lhe, com o saber de experiências feito:
- Madame não passa na barreira com esse sortimento. O máximo permitido são cinco quilos.
- Não seja por isso. Trouxe fronhas em quantidade, e vou transformar meus feijões e meu arroz em travesseiros para os meninos repousarem a cabeça - retrucou-lhe a precavida senhora.
Assim foi feito, e, de novo com o pé na tábua, a família voltou muito feliz para o País do Está-em-Falta, conhecido também por Guanabara.
Junto à barreira, a fila de caminhões e automóveis era longa, e os guardas procediam a uma investigação cabal. A Alfândega de Nova York não seria mais rigorosa, ao farejar entorpecentes ou engenhos nucleares. Alguns veículos retrocediam, e de outros os motoristas retiravam pacotes condenados, que eram entregues à lei, na pessoa de seus agentes implacáveis.
- Qual, não atravesso esse muro de Berlim - suspirou Dona Araci, desanimada. Eles fazem até radiografia da gente.
Nisso apareceu um cortejo fúnebre, que os guardas deixaram passar sem formalidades, dando-lhe preferência, e Dona Araci não teve dúvida: incorporou-se a ele, recomendando aos garotos:
- Vocês aí: façam cara triste!
E lá se foi o enterro, enorme. Que defunto seria aquele, tão estimado, a julgar pelo número de acompanhantes, pelas fisionomias compungidas? Eis que aparece o cemitério, na curva da estrada, e de súbito o imenso acompanhamento deixa o carro mortuário quase sozinho, com um ou dois carros na retaguarda, e toca para o Rio. Os motoristas interpelam-se aos gritos:
- Quantos quilos você trouxe?
- E você?
- E você?
Dona Araci não chegou a apurar quem era o morto a que prestara aquela homenagem de emergência. Os outros também não sabiam. E daí, talvez o caixão não contivesse nenhum defunto, quem sabe?

Parte 3 (No mundo do consumo) - Crônica 4

A cesta
Paulo Mendes Campos

Quando a cesta chegou, o dono não estava. Embevecida, a mulher recebeu o presente. Procurou logo o cartão, leu a dedicatória destinada ao marido, uma frase ao mesmo tempo amável e respeitosa.
Quem seria? Que amigo seria aquele que estimava tanto o marido dela? Aquela cesta, sem dúvida nenhuma, mesmo a uma olhada de relance custava um dinheirão. Como é que ela nunca tivera notícia daquele nome? Ricos presentes só as pessoas ricas recebem. Eles eram remediados, viviam de salários, sempre inferiores ao custo das coisas. Sim, o marido, com o protesto dela, gostava de bons vinhos e boa mesa, mas isso com o sacrifício das verbas reservadas a outras utilidades.
De qualquer forma, aquela cesta monumental chegava em cima da hora. E se fosse um engano?  Não, felizmente o nome e o sobrenome do marido estavam escritos com toda a clareza e o endereço  estava certo.
Alvoroçada, examinou uma a uma as peças envoltas em flores e serpentinas de papel colorido. Garrafas de uísque escocês, champanha francês, conhaque, vinhos europeus, pâté, licores, caviar, salmão, champignon, uma lata de caranguejos japoneses... Tudo do melhor. Mulher prudente, surripiou umas garrafas e escondeu-as nas gavetas femininas do armário. Conhecia de sobra a generosidade do marido: à vista daquela cesta farta, iria convidar todo o mundo para um devastador banquete. Isto não tinha nem conversa, era tão certo quanto dois e dois são quatro. Mas quem seria o amigo? Esperou o regresso do marido, morrendo de curiosidade.
E ei-lo que chega, ao cair da noite, cansado, sobraçando duas garrafas de vinho espanhol, uma garrafa de uísque engarrafado no Brasil, um modesto embrulho de salgadinhos. Caiu das nuvens ao deparar com a gigantesca cesta. Pálido de espanto, não tanto pelo valor material do presente (era um sentimental), mas pelo valor afetivo que o mesmo significava, começou a ler o cartão que a mulher lhe estendia. Houve um longo minuto de densa expectativa, quando, terminada a leitura, ele enrugou a testa e se concentrou no esforço de recordar. A mulher perguntava aflita:
- Quem é?
Mais da metade da esperança dela desabou com a desolada resposta:
- Esta cesta não é para mim.
- Como assim? Você anda ultimamente precisando de fósforo.
- Não é minha.
- Mas olhe o endereço: é o nosso! O nome é o seu.
- O meu nome não é só meu. Há um banqueiro que tem o nome igualzinho. Está na cara que isto é cesta pra banqueiro.
- Mas, o endereço?
- Deve ter sido procurado na lista telefônica.
Ela não queria, nem podia, acreditar na possibilidade do equívoco.
- Mas faça um esforço.
- Não conheço quem mandou a cesta.
- Talvez um amigo que você não vê há muito tempo.
- Não adianta.
- Você não teve um colega que era muito rico?
- O nome dele é completamente diferente. E ficou pobre!
- Pense um pouco mais, meu bem.
Novo esforço foi feito, mas a recordação não veio. Ela apelou para a hipótese de um admirador.
Afinal, ele era um grande escritor, autor de um romance que fizera sucesso e de um livro para crianças, que comovera leitores grandes e pequenos.
- Um fã, quem sabe é um fã?
- Mulher, deixa de bobagens... Que fã coisa nenhuma!
- Pode ser sim! Você é muito querido pelos leitores.
A idéia o afagou. Bem, era possível. Mas, em hipótese nenhuma, ficaria com aquela cesta, caso não estivesse absolutamente certo de que o presente lhe pertencia.
- Sou um homem de bem!
Era um homem de bem. Pegou o catálogo, procurou o telefone do homônimo banqueiro, falou diretamente com ele depois de alguma demora: não é muito fácil um desconhecido falar a um
banqueiro.
Aí, a mulher ouviu com os olhos arregalados e marejados:
- Pode mandar buscar a cesta imediatamente. O senhor queira desculpar se minha mulher desarrumou um pouco a decoração. Mas não falta nada.
A mulher foi lá dentro, quase chorando, e voltou com umas garrafas nas mãos.
- Eu já tinha escondido estas.
- Você é de morte. Coloque as garrafas na cesta.
Vinte minutos depois, um carro enorme parava à porta, subindo um motorista de uniforme. A cesta engalanada cruzou a rua e sumiu dentro do automóvel. Ele sorria, filosoficamente. Dos olhos da mulher já agora corriam lágrimas francas. Quando o carro desapareceu na esquina, ele passou o braço em torno do pescoço da mulher:
- Que papelão, meu bem! Você ficou olhando para aquela cesta como se estivesse assistindo à saída de meu enterro.
E ela, passando um lenço nos olhos:
- Às vezes é duro ser casada com um homem de bem

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