PARTE 2 – ANIMAIS
2.1
O pintinho, Carlos Drummond de Andrade.
2.2
História triste de tuim, Rubem Braga.
2.3
A verdadeira história do pio, Paulo Mendes Campos
2.4
O dia da caça, Fernando Sabino.
Parte 2 (Animais)
- Crônica 1
O PINTINHO
Carlos Drummond de Andrade
Foi talvez de um filme de Walt Disney
que nasceu a moda de enfeitar com pintinhos vivos as mesas de aniversário
infantil. Era uma excelente ideia, no mundo ideal do desenho animado; conduzida
para o mundo concreto dos apartamentos, também alcançou êxito absoluto. Muitos
garotos e garotas jamais tinham visto um pinto de verdade, e queriam comê-lo,
assim como estava, imaginando ser uma espécie de doce mecânico, mais saboroso.
Houve que contê-los e ensinar-lhes noções urgentes de biologia. As senhoras e
moças deliciaram-se com a surpresa e gula dos meninos, e foram unânimes em
achar os pintos uns amorecos. Mas estes, encurralados num centro de mesa, entre
flores que não lhes diziam nada ao paladar, e atarantados por aquele rumor
festivo e suspeito, deviam sentir-se absolutamente desgraçados.
Como a celebração do aniversário
terminasse, e ninguém sabia o que fazer com os pintos, pareceu à dona da casa
que seria gentil e cômodo oferecer um a cada criança, transferindo assim às
mães o problema do destino a dar-lhes. O único inconveniente da solução era que
havia mais guris do que pintos, e não foi simples convencer aos não
contemplados que aquilo era brincadeira para guris ainda bobinhos, e que
mocinhas e rapazinhos de nível mental superior não se preocupam com essas
frioleiras.
Os pintos, em consequência,
espalharam-se pela cidade, cada qual com seu infortúnio e seu proprietário
exultante. O interesse das primeiras horas continuava a revestir-se de feição
ameaçadora para a integridade física dos recém-nascidos (se é que pinto
produzido em incubadora realmente nasce). Um deles foi parar num apartamento
refrigerado, e posto a um canto da copa, sobre uma caixinha de papelão forrada
de flanela. Semeou-se em redor o farelinho malcheiroso que o gerente do armazém
recomendara como alimento insubstituível para pintos tenros, e que (o pai leu
na enciclopédia) devia ser, teoricamente, farinha de baleia. A ideia da baleia
alimentando o pinto encheu o garotinho de assombro, e pela primeira vez o mundo
lhe apareceu como um sistema. O pinto sentia um frio horroroso, mas
desprezava a flanela, e a todo instante se descobria, tentando fugir. Procurava
algo que ele mesmo não sabia se era calor da galinha ou da criadeira. À falta
de experiência, dirigiu seus passinhos na direção das saias que circulavam pela
copa. As saias nada podiam fazer por ele, senão recolocá-lo em seu ninho, mas o
pinto procurava sempre, e piava. O garoto queria carregá-lo,
inventava comidas que talvez interessassem àquele paladar em formação. Não
senhor - explicou-lhe a mãe:
- Não se pode pegar, não se pode
brincar, não se pode dar nada, a não ser farelo e água.
- Nem carinho?
- Meu amor, carinho de gente é perigoso
para bicho pequeno.
Mas o pinto, mesmo sem saber, estava
querendo era um palmo sujo de terra, com insetos e plantas comestíveis, o raio
de sol batendo na poça d'água caída do céu, e companhia à sua altura e feição,
e, numa casa assim tão bonita e confortável, esses bens não existiam. E
piava.
A situação começou a preocupar a dona
da casa, que telefonou à amiga doadora do pinto: que fazer com ele?
- Querida, procure criá-lo com
paciência, e no fim de três meses bote na panela, antes que vire galo. É o
jeito.
Não virou galo, nem caiu na panela. No
fim de três dias, piando sempre e sentindo frio, o pinto morreu. Foi sua
primeira e única manifestação de vida, propriamente dita.
O menino queria guardá-lo consigo,
supondo que, inanimado, o pinto se transformara em brinquedo, manuseável. Foi
chamado para dentro, e quando voltou o corpinho havia desaparecido na
lixeira.
Parte 2 (Animais)
- Crônica 2
HISTÓRIA TRISTE DE TUIM
Rubem Braga
João-de-barro
é um bicho bobo que ninguém pega, embora goste de ficar perto da gente, mas de
dentro daquela casa de João-de-barro vinha uma espécie de choro, um chorinho
fazendo tuim, tuim, tuim....
A casa estava num galho alto, mas um menino subiu até perto, depois com uma vara de bambu conseguiu tirar a casa sem quebrar e veio baixando até o outro menino apanhar. Dentro, naquele quartinho que fica bem escondido depois do corredor de entrada para o vento não incomodar, havia três filhotes, não de João-de-barro, mas de tuim.
A casa estava num galho alto, mas um menino subiu até perto, depois com uma vara de bambu conseguiu tirar a casa sem quebrar e veio baixando até o outro menino apanhar. Dentro, naquele quartinho que fica bem escondido depois do corredor de entrada para o vento não incomodar, havia três filhotes, não de João-de-barro, mas de tuim.
Você
conhece, não? De todos esses periquitinhos que tem no Brasil, tuim é capaz de
ser menor. Tem bico redondo e rabo curto e é todo verde, mas o macho tem umas
penas azuis para enfeitar. Três filhotes, um mais feio que o outro, ainda sem
penas, os três chorando.
O menino
levou-os para casa, inventou comidinhas para eles, um morreu, outro morreu,
ficou um. Geralmente se cria em casa é casal de tuim, especialmente para se
apreciar o namorinho deles.
Mas aquele tuim macho foi criado sozinho e, como se diz na roça, criado no dedo. Passava o dia solto, esvoaçando em volta da casa da fazenda, comendo sementinhas de imbaúba. Se aperecia uma visita fazia-se aquela demonstração: era o menino chegar na varanda e gritar para o arvoredo: tuim, tuim, tuim! Às vezes demorava, então a visita achava que aquilo era brincadeira do menino, de repente surgia a ave, vinha certinho pousar no dedo do garoto.
Mas aquele tuim macho foi criado sozinho e, como se diz na roça, criado no dedo. Passava o dia solto, esvoaçando em volta da casa da fazenda, comendo sementinhas de imbaúba. Se aperecia uma visita fazia-se aquela demonstração: era o menino chegar na varanda e gritar para o arvoredo: tuim, tuim, tuim! Às vezes demorava, então a visita achava que aquilo era brincadeira do menino, de repente surgia a ave, vinha certinho pousar no dedo do garoto.
Mas o pai
disse: "menino, você está criando muito amor a esse bicho, quero avisar:
tuim é acostumado a viver em bando. Esse bichinho se acostuma assim, toda tarde
vem procurar sua gaiola para dormir, mas no dia que passar pela fazenda um
bando de tuins, adeus. Ou você prende o tuim ou ele vai embora com os outros,
mesmo ele estando preso e ouvindo o bando passar, esta arriscado ele morrer de
tristeza". E o menino vivia de ouvido no ar com medo de ouvir bando de
tuim.
Foi de
manhã, ele estava cantando minhoca para pescar quando viu o bando chegar, não
tinha engano: era tuim, tuim, tuim... Todos desceram ali mesmo em mangueiras,
mamonas e num bambuzal, dividido em partes. E o seu? Já tinha sumido, estava no
meio deles, logo depois todos sumiram para uma roça de arroz, o menino gritava
com o dedinho esticado para o tuim voltar, mas nada dele vir.
Só parou de chorar quando o pai chegou a cavalo, soube da coisa e disse: " venha cá". E disse: " o senhor é um homem, estava avisado do que ia acontecer, portanto, não chore mais".
Só parou de chorar quando o pai chegou a cavalo, soube da coisa e disse: " venha cá". E disse: " o senhor é um homem, estava avisado do que ia acontecer, portanto, não chore mais".
O menino
parou de chorar, pois seu pai o havia consolado, mas como doía seu coração! De
repente, olhe o tuim na varanda! Foi uma alegria na casa que foi uma beleza,
até o pai confessou que ele também estivera muito infeliz com o sumiço do tuim.
Houve quase
um conselho de família, quando acabaram as férias: deixar o tuim, levar o tuim
para São Paulo? Voltaram para a cidade com o tuim, o menino toda hora dando
comidinha a ele na viagem. O pai avisou: "aqui na cidade ele não pode
andar solto, é um bicho da roça e se perde, o senhor está avisado".
Aquilo encheu de medo o coração do menino. Fechava as janelas para soltar o tuim dentro de casa, andava com ele no dedo, ele voava pela sala, a mãe e a irmã não aprovavam, o tuim sujava dentro de casa.
Soltar um pouquinho no quintal não devia ser perigo, desde que ficasse perto, se ele quisesse voar para longe era só chamar, que voltava, mas uma vez não voltou. De casa em casa, o menino foi indagando pelo tuim: "que é tuim?" perguntavam pessoas ignorantes. "Tuim?" Que raiva! Pedia licença para olhar no quintal de cada casa, perdeu a hora de almoçar e ir para a escola, foi para outra rua, para outra.
Teve uma idéia, foi ao armazém de "seu" Perrota: "tem gaiola para vender?" Disseram que tinha. " Venderam alguma gaiola hoje?" Tinham vendido uma para uma casa ali perto.
Aquilo encheu de medo o coração do menino. Fechava as janelas para soltar o tuim dentro de casa, andava com ele no dedo, ele voava pela sala, a mãe e a irmã não aprovavam, o tuim sujava dentro de casa.
Soltar um pouquinho no quintal não devia ser perigo, desde que ficasse perto, se ele quisesse voar para longe era só chamar, que voltava, mas uma vez não voltou. De casa em casa, o menino foi indagando pelo tuim: "que é tuim?" perguntavam pessoas ignorantes. "Tuim?" Que raiva! Pedia licença para olhar no quintal de cada casa, perdeu a hora de almoçar e ir para a escola, foi para outra rua, para outra.
Teve uma idéia, foi ao armazém de "seu" Perrota: "tem gaiola para vender?" Disseram que tinha. " Venderam alguma gaiola hoje?" Tinham vendido uma para uma casa ali perto.
Foi lá,
chorando, disse ao dono da casa: "se não prenderam o meu tuim então por
que o senhor comprou gaiola hoje?" O homem acabou confessando que tinha
aparecido um periquitinho verde sim, de rabo curto, não sabia que chamava tuim.
Ofereceu comprar, o filho dele gostara tanto, ia ficar desapontado quando
voltasse da escola e não achasse mais o bichinho. "Não senhor, o tuim é
meu, foi criado por mim".
Voltou para casa com o tuim no dedo.
Voltou para casa com o tuim no dedo.
Pegou uma
tesoura: era triste, era uma judiação, mas era preciso, cortou as asinhas,
assim o bichinho poderia andar solto no quintal, e nunca mais fugiria.
Depois foi
dentro de casa para fazer uma coisa que estava precisando fazer, e, quando
voltou para dar comida a seu tuim, viu só algumas penas verdes e as manchas de
sangue no cimento. Subiu num caixote para olhar por cima do muro, e ainda viu o
vulto de um gato ruivo que sumia.
Acabou-se a
triste história do tuim.
Parte 2 (Animais)
- Crônica 3
A VERDADEIRA HISTÓRIA DE PIO
Paulo Mendes Campos
No
princípio do ano, para amenizar o reinício das aulas, as crianças compraram um
pinto na feira. Deram-lhe o nome de Pio.
Todos que o antecederam tinham morrido, mas dessa vez residia no edifício uma
senhora que entendia da sobrevivência de pinto de feira em apartamento perto do
mar. Instruídas por ela, as crianças conseguiram manter acesa dentro de Pio a
faísca da vida. Já de pequenino, mostrou-se pinto esquisito, achegado aos seres
humanos e danado de andejo. Piava com monotonia os segundos todos do tempo,
como se o chateasse a passagem das horas.
Em
mudança de casa, passou dois dias subindo e descendo a escada, piando, piando,
entre as pernas dos carregadores portugueses. Seu prestígio cresceu com o
episódio; era tratado como gente e se orgulhava disso, assumindo um ar à vontade
e presumido de bípede empenado.
Mas
acabou me aborrecendo. Como as crianças tinham atingido a irremovível crise do
cachorrinho, acabei cedendo, mas exigindo a extradição de Pio para a casa que o
Zanine estava construindo na Barra da Tijuca.
Meses
depois, ao visitar o amigo, Pio já era quase um galo, branco e bonito, mas extravagante
e presunçoso. Indiferente ao terreiro, preferia desfilar na sala e na varanda,
misturando-se às pessoas, peito estufado, chamando atenção para uma figura que
ele queria irresistível.
Mais
algum tempo, virou galo mesmo e aí não demorou a revelar os indícios neuróticos
que o agitavam. Pio nunca tinha visto na vida outro ser galináceo.
Acreditava-se
o único ente de sua raça, superior e absoluto. Firmou-se na crença carismática,
deu para agredir os homens. Como estes se defendessem com a ponta do sapato,
mudou de tática, bicando-lhes à traição a barriga da perna. Só respeitava o
próprio Zanine, a quem não tinha afeição, mas considerava com gratuidade um
aliado no combate contra o mundo. Seguia o dono por todos os cantos, não como
um cão humilde, mas com a imponência do chefe de gabinete acompanhando o
ministro.
Zanine, como aconteceu comigo,
embora achasse graça na birutice de Pio, acabou saturado, dando o boboca de
presente ao poeta Rubem Braga, que sempre foi um infalível receptador de aves
desajustadas.
Já se sabe, o Braga é um fazendeiro
do ar, morando entre hortaliças e cajueiros num décimo terceiro andar de
Ipanema.
Insolente
diante da natureza, Pio fez estragos na horta, desenterrou sementeiras,
estraçalhou as couves, dando-se ainda à petulância de aborrecer, com relativo
escândalo, a filha da cozinheira. Também o Braga, achando graça, foi
complacente, impedindo que a cozinheira transformasse o doidinho em galo ao molho
de cabidela. Mas acabou igualmente cheio, dando Pio ao hortelão português, dono
de farto galinheiro no subúrbio. Antes, contudo, o galo foi colocado diante de
um espelho, na esperança geral de que descobrisse o outro, o próximo, o irmão galináceo
que ele devia amar como a si mesmo.
Não quis
saber de nada, persistindo na neurose: durante meio minuto encarou a imagem com
estupefação, deu-lhe as costas e se foi, único de sua espécie, dono da
pretensão que o inflava da crista sanguínea ao facho da cauda.
Enfim
chegou a hora do galinheiro, quando Pio passaria a viver uma vida normal dentro
da comunidade, encontrando na força do amor a salvação.
Pois o bestalhão, mal ingressou no
harém, matou a bicadas duas galinhas sinceras. E o português o comeu.
Parte 2 (Animais)
- Crônica 4
O DIA DA CAÇA
Fernando Sabino
A caçada estava marcada para as 7
horas. Desde as 6, porém, Paulo e eu já estávamos de pé, aguardando a chegada
de seu Chico Caçador.
- Seu Chico vai trazer as
espingardas?
- Vai. E cachorro também.
- Cachorro? Para que cachorro?
Olhei com pena meu companheiro de
aventura:
- Onde você já viu caçada sem
cachorro, rapaz?
- Ele disse que hoje vai ser só
passarinho.
- Passarinho para ele é codorna,
macuco, essas coisas...
Em pouco chegava seu Chico, todo
animado:
- Tudo pronto, meninos?
De pronto só tínhamos o corpo. Seu
Chico trazia atravessadas às costas duas espingardas de caça e usava um gibão
de couro, uma cartucheira, vinha todo fantasiado de caçador. Ao seu redor
saracoteava um cachorro:
- O melhor perdigueiro destas
redondezas.
Na varanda da fazenda, seu Chico se
pôs a encher os cartuchos, meticulosamente, usando para isso uns aparelhinhos
que trouxera, um saquinho de pólvora, outro de chumbo:
- Vai haver codorna no almoço para a
família toda - dizia, entusiasmado.
Despedimo-nos comovidos da família e
partimos através do pasto. Seu Chico, compenetrado, ia dando instruções,
procurando impressionar:
- Parou, esticou o corpo, endureceu o
rabo? Tá amarrado. É só esperar o bichinho voar e tacar fogo!
- Seu Chico, nós não vamos passar
perto daquele touro, vamos?
- Aquele touro é uma vaca.
A vaca levantou a cabeça e ficou a
olhar-nos, na expectativa.
- Por via das dúvidas, me dá aí essa
espingarda.
Fomos passando com jeito perto da
vaca.
- Bom dia - disse eu.
- Buu - respondeu ela.
Ao sopé do morro o cachorro se imobilizou.
- É agora! Me dá aqui a espingarda!
- Fiquem quietos - comandou seu
Chico, num sussurro.
- Que foi, seu Chico? Não estou vendo
nada...
Alguma coisa deslizou como um rato
por entre o capim rasteiro, levantou vôo espadanando as asas.
- Fogo! Fogo!
Paulo atirou na codorna, eu atirei em
seu Chico.
- Cuidado!
- Que bicho é esse?
Seu Chico suspirou, resignado:
- Era uma codorna. Não tem
importância... Olha, quando atirar outra vez, vira o cano pro ar. O chumbo
passou tinindo no meu ouvido.
No ar ficaram apenas duas fumacinhas.
Fomos andando, seu Chico carregou novamente nossas espingardas. Assim que o
cachorro se imobilizava, ficávamos quietos, farejando ao redor, canos para o
ar.
- Vira isso pra lá!
- Agora! Fogo!
Mal tínhamos tempo de ver uma coisa
escura desaparecer no céu, como um disco voador.
- Asssim também não vai, seu Chico.
Não dá tempo...
- Me dá aqui essa espingarda. Deixa
eu matar a primeira para mostrar como é que é.
Andamos o dia todo pelo pasto. Nada
de caça.
- Nem ao menos uma codorninha -
suspirava seu Chico, quando o sol começou a dobrar o céu. - Tem dia que eu mato
mais de quinze macucos.
Andando, subindo morro, saltando
cerca, atravessando valas, pisando em barro, escorregando no capim. o estômago
começou a doer.
- Seu Chico, o melhor é a gente
desistir. Estamos com fome.
- Hoje no jantar vocês comem perdiz.
Ou eu desisto de ser caçador.
Sua honra estava em jogo. A tarde
avançava e seu Chico perscrutando o pasto, açulando o cachorro. Paulo, sentado
num toco - desistira de andar: tirara o sapato e coçava o dedão do pé. Resolvi
também fazer uma parada para caçar carrapatos. Seu Chico desapareceu numa dobra
do terreno. De repente, pum! pum! - era o caçador solitário. Teria acertado
desta vez? A vaca de novo. Vinha vindo pachorrentamente pela picada aberta por
ela própria.
- Cuidado, Paulo! - preveni. - Olha a
vaca.
Paulo se voltou para a vaca, que já
ia passando ao largo:
- Buuu! - fez com desprezo.
A vaca se deteve, voltou-se nos
flancos e de súbito disparou num pesado galope em sua direção. Paulo deu um
salto, abriu a correr, passou por mim como um raio:
- Foge! Foge!
Atrás de nós a terra estremecia e a
vaca bufava, escavando o chão com as patas.
- Seu Chico! Socorro!
- Seu Chico! Socorro!
Em poucos minutos e aos saltos,
escorregadelas, trambolhões, cruzamos o terreno que leváramos toda a manhã a
conquistar. Já na porteira da fazenda, nos voltamos para ver a vaca, que ficara
para trás, entretida com uma touceira de capim.
- Devo ter falado algum palavrão em
língua de vaca.
Em pouco regressava seu Chico,
cabisbaixo, desmoralizado, quase chorando:
- Errei até em anu.
Procuramos consolá-lo:
- Um dia é da caça e outro do
caçador, seu Chico.
Deixou conosco as espingardas e
foi-se pelo pasto mesmo, evitando a fazenda e o opróbrio aos olhos dos
moradores. Paulo e eu nos coçávamos, sentados no travão da cerca, quando ambos
demos um grito:
- Epa! Que é aquilo?
- Você viu?
Uma caça, uma caça enorme! Um
gigantesco galináceo que ao longe ganhava o morro em disparada, sumindo ali,
surgindo lá - uma cegonha?
- Cegonha nada! Uma avestruz!
Saímos como loucos em perseguição da
avestruz. Nas fraldas do morro disparamos o primeiro tiro.
- Socorro! - berrou a avestruz.
Deu um salto e abriu fuga com suas
pernocas longas, morro acima. Ah, se seu Chico nos visse agora!
- Pum!
- Socorro!
E a ave pernalta fugia espavorida,
escondendo-se na vegetação. Íamos no seu encalço, implacáveis.
- Pum! - trovejava a espingarda.
- Não! Não! - implorava a avestruz na
sua fuga, largando penas pelo caminho.
A noite veio surpreender-nos do outro
lado do morro, já às portas da cidade. Voltamos para a fazenda estropiados,
roupas rasgadas, sapatos pesados de barro. Fomos recebidos com alegre
expectativa.
- E então? Caçaram alguma coisa?
- Com seu Chico, nem um passarinho.
Mas depois que ele foi embora quase apanhamos uma caça esplêndida, uma avestruz
deste tamanho...
O dono da fazenda pôs as mãos na
cabeça:
- Minha siriema, que eu mandei vir da
Argentina! Imagine o susto da coitadinha!
Embarafustamo-nos pela cozinha,
completamente derrotados.
- Que vamos ter hoje no jantar? -
perguntei à cozinheira.
- Galinha ao molho pardo.
- Já matou?
- Não.
Empunhei a espingarda com decisão e
voltei-me para o galinheiro, mas Paulo cortou-me os passos:
- Não faça isso! O crime não
compensa.
E propôs que na manhã seguinte saíssemos
para caçar borboletas.
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