Parte 1
(Crianças) - Crônica 2
MENINA NO JARDIM
Paulo Mendes Campos
Em seus 14 meses de permanência
neste mundo, a garotinha não tinha tomado o menor conhecimento das leis que
governam a nação. Isso se deu agora na praça, logo na chamada República Livre
de Ipanema.
Até ontem ela se comprazia em
brincar com a terra. Hoje, de repente, deu-lhe um tédio enorme do barro de que
somos feitos: atirou o punhado de pó ao chão, ergueu o rosto, ficou pensativa,
investigando com ar aborrecido o mundo exterior. Por um momento seus olhos
buscaram o jardim à procura de qualquer novidade. E aí ela descobriu o verde
extraordinário: a grama. Determinada, levantou-se do chão e correu para a
relva, que era, vá lá, bonita, mas já bastante chamuscada pela estiagem.
Não durou mais que três minutos
seu deslumbramento. Da esquina, um crioulão de bigodes, representante dos
Poderes da República, marchou até ela, buscando convencê-la de que estava
desrespeitando uma lei nacional, um regulamento estadual, uma postura
municipal, ela ia lá saber o quê.
Diga-se, em nome da verdade, que
no diálogo que se travou em seguida, maior violência se registrou por parte da
infratora do que por parte da Lei, um guarda civil feio, mas invulgarmente
urbano.
─ Desce da grama,
garotinha ─ disse a Lei.
─ Blá blé bli
bá ─ protestou a garotinha.
─ É proibido pisar na
grama ─ explicou o guarda.
─ Bá bá
bá ─ retrucou a garotinha com veemência.
─ Vamos, desce, vem para a
sombra, que é melhor.
─ Buh
buh ─ afirmou a garotinha, com toda razão, pois o sol estava mais
agradável do que a sombra.
A insubmissão da garotinha
atingiu o clímax quando o guarda estendeu-lhe a mão com a intenção de ajudá-la
a abandonar o gramado. A gentileza foi revidada comum safanão. Dura lex sed
lex.
─ Onde está sua mamãe?
A garotinha virou as costas ao
guarda, com desprezo. A essa altura levantou-se do banco, de onde assistia à
cena, o pai da garota, que a reconduziu, sob chorosos protestos, à terra seca
dos homens, ao mundo sem relva que o Estado faculta ao ir e vir dos cidadãos.
A própria Lei, meio encabulada
com o seu rigor, tudo fez para que o pai da garotinha se persuadisse de que, se
não há mal para que uma brasileira tão pequenininha pise na grama, isso de
qualquer forma poderia ser um péssimo exemplo para os brasileiros maiores.
─ Aberto o precedente, os
outros fariam o mesmo ─ disse o guarda com imponência.
─ Que fizessem, deveriam
fazê-lo ─ disse o pai.
─ Como? ─ perguntou
o guarda confuso e vexado.
─ A grama só podia ter sido
feita, por Deus ou pelo Estado, para ser pisada. Não há sentido em uma relva na
qual não se pode pisar.
─ Mas isso estraga a grama,
cavalheiro!
─ E daí? Que tem isso?
─ Se a grama morrer, ninguém
mais pode ver ela ─ raciocinou a Lei.
─ E o senhor deixa de matar
a sua galinha só porque o senhor não pode mais ver ela?
O guarda ficou perplexo e mudo. O
pai, indignado, chegou à peroração:
─ É evidente que a relva só
pode ter sido feita para ser pisada. Se morre, é porque não cuidam dela. Ou
porque não presta. Que morra. Que seja plantado em nossos parques o bom capim
do trópico. Ou que não se plante nada. Que se aumente pelo menos o pouco espaço
dos nossos poucos jardins. O que é preciso plantar, seu guarda, é uma semente
de bom-senso nos sujeitos que fazem os regulamentos.
─ Buh
bah ─ concordou a menina, correndo em disparada para a grama.
─ O senhor entende o que ela
diz? ─ perguntou o guarda.
─ Claro ─ respondeu
o pai.
─ Que foi que ela disse
agora?
─ Não a leve a mal, mas ela
mandou o regulamento para o diabo que o carregue.
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